Tocar na ferida...




Na sociedade de hoje todos achamos ser campeões da poupança, manipuladores de descontos, caçadores de promoções e super-heróis dos preços baixos. Contudo, quando se trata de viajar e passar férias, o barato pode mesmo sair caro. 
Se até o tuga, habituado à sua fiel agência de viagens, já usa a ryanair, imaginem os turistas finlandeses, suecos, noruegueses,… acostumados desde sempre ao couch surfing, hostels, airbnb, entre outros estrangeirismos turísticó-rasca.

A estes termos ingleses somamos os nossos vocábulos “piquenique”, “excursão”, “marmita” e “conserveira”, obtendo assim a tão aguardada classificação “Low cost” que pode arrasar o romantismo de qualquer viajante.

Para conhecermos melhor este emergente fenómeno chamado férias temos de recuar ao século XX.

Há cem anos atrás, o turismo era coisa chique, visto como um capricho das classes sociais mais nobres, já que a restante população não gozava mais do que o Natal e todos os santos domingos do ano. Nas suas elegantes férias, a fina-flor portuguesa frequentava estâncias termais e passeava-se por elegantes avenidas à beira-mar. O ténis e o golf entretinham os cavalheiros e os bordados e a leitura acompanhavam o chá das donzelas que se juntavam para falar dos seus lavores. As crianças respiravam o ar puro dos pinhais e eram literalmente emergidas na água do mar, que curava todas as maleitas provenientes do inverno anterior. Não havia doença que escapasse com uns belos mergulhos de água salgada, dados pelas sábias mãos dos banheiros.

Algumas décadas depois, lá para meados dos anos 80, o ideal turístico tuga continuava a ser semelhante: acercar-se de uma praia de areia branca e fina, colocar o guarda-sol às 9 da manhã e ficar o dia todo a apanhar a brisa marítima como se de um tratamento termal se tratasse. Deu-se assim o boom turístico do Algarve, e de estâncias turísticas como Benidorm, aqui na vizinha Espanha. Os fatos de banho espelhavam uma maior liberdade e a ocupação dos tempos livres era, à época, muito diversificada.

O bronzeado, por vezes à custa do óleo Fula e coca-cola com que se besuntavam gentilmente os jovens mais “eighties”, era a forma de comprovar de que tinham tido direito às benditas férias. A ditadura dos corpos esbeltos fazia as suas primeiras vítimas — as escanzeladas supermodelos que surgiam de todos os países.

Nos anos 90, quem tivesse a oportunidade de ir à Disney nas férias da Páscoa e ter uma semana de férias no Algarve durante o mês de agosto, era por si só uma pessoa abastada ou, na pior das hipóteses, um incorrigível cliente de créditos, algo verdadeiramente desastroso, que poderia manter o mais católico dos mortais afastado da decência.

Dez anos volvidos e já se considerava normal ir de férias para o estrangeiro.

O Algarve tinha sido tomado pelos “camones” e o resto do país já pertencia aos “avec’s”. Nós, os verdadeiros espécimes de sangue lusitano já não conseguíamos pisar os areais da nossa costa sem ver pessoas a fritar ao sol, qual índio pele vermelha. Crianças com t-shirts de microfibra e chapéus de abas que tapavam até as orelhas. Se os pais eram autênticos camarões, os seus descendentes pareciam saídos de um planeta de albinos, tal era o excesso de zelo na sua proteção solar.

Hoje, quase 20 anos depois do mítico ano 2000, somos mais permissivos aos turistas e às suas rotinas. Apesar disso, não deixam de nos fazer “comichão” os assuntos que implicam a nossa liberdade no dia a dia.

E a realidade é que, em algumas cidades do nosso país, os estrangeiros somos nós. Tudo gira à volta do turista, sendo mais provável que nos abordem em inglês do que na nossa patriótica língua materna.

Os transportes públicos funcionam de transfer; servem para levar e trazer todo o tipo de cidadãos internacionais.

No metro, por exemplo, somos abalroados por malas gigantes que ocupam todos os corredores de circulação. Quando nos impedem de sair temos de adivinhar pelo aspeto que língua  havemos de falar, já que o mais provável é sermos nós a ter de fazer esse esforço.

Ora, aí está a grande diferença! Se um tuga se desloca a algum país de língua oficial estrangeira leva consigo uma cábula com as frases mais comuns para se desenrascar e, se necessário, gesticula com todo o entusiasmo para que o recetor perceba a mensagem, custe o que custar. Somos “prós” no portunhol, especialistas em acentuar os “erres” em França e imitamos como ninguém o inglês britânico por sermos espetadores assíduos das séries de comédia inglesa. Com ou sem "batatas na boca", falamos o inglês como ninguém!

Cá, nas nossas “cidades estrela”, ainda não nos habituámos à presença dos hostels e ao despovoamento dos centros históricos fora da época alta. Estamos constantemente a queixar-nos do excesso de turismo e contradizemos quem nos diz que é pelo turismo que Portugal segue em frente.

Na realidade, nós sabemos que temos razão. Anda a população a pagar impostos para o saneamento, para a reciclagem e, quando chega o verão, nem há fossa que não entupa nem caixote que não transborde.

Se o turista usa o couch surfing, ninguém ganha com o seu alojamento; se ainda assim leva a marmita e usa os transportes públicos, sobem-se os preços dos "cartões andante" e qualquer garrafa de água fresca ultrapassa o seu valor razoável. Essa é a mais dura realidade: a de quem vive dentro de  estâncias turísticas como o Porto ou Lisboa.

Quando vamos ingenuamente a um café, consumimos o que nos apetece e, ainda assim, temos de desembolsar 50 cêntimos para ir ao WC, achamos que estamos em França e, mais uma vez nos convertemos em queixosos viciados na perseguição ao turista.

O que nos vale é a nossa capacidade de sobreviver a estes fenómenos  sazonais e a  oportunidade de aprender com eles.

Agora vamos a Londres ou a Paris, em low cost, com uma marmita na mão, preparados para aproveitar os dias grátis nos museus e os passes de 10 viagens do metro. Corremos as capitais europeias como o mais chique dos turistas, com as garrafas da tupperware na mão e a sensação de que naqueles países o nosso ordenado só daria para viver uma semana. Quando estamos no estrangeiro a nossa comida é a melhor e o clima, esse então...nem se fala! Já quando chegamos ao nosso país, falamos do estrangeiro como o berço da perfeição. Em seguida publicamos as fotografias das viagens no instagram com as hashtags #perfectspot, #missthosedays. #bestplaceever e outras charadas de fazer inveja ao mais viajado dos nossos amigos.

Ainda assim, imitando todos os clichês turísticos da atualidade, aterramos em Portugal e voltamos a ser os mesmos queixosos de sempre — os estrangeiros continuam a ser camones, avec's e "nuestros hermanos", o que em bom português é o mesmo que dizer: usurpadores do nosso cantinho à beira-mar plantado. 

Somos assim, uma mescla de bom e mau humor, que vai e vem como a brisa que nos passa pela cara em pleno verão.

#opinião

Rita, her.


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